terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O queijo e os vermes

(Capa da obra disponível em: www.ibiubi.com.br)

O historiador Carlo Ginzburg estava pesquisando um outro assunto quando se deparou com uma figura bastante curiosa: Domenico Scandella, popularmente conhecido como Menochio. Esse homem foi investigado pelo Tribunal da Inquisição devido suas idéias excêntricas, idéias que conquistaram Ginzburg provocando nele o desejo de escrever uma obra somente sobre Domenico para criar a oportunidade de analisar sua mentalidade micro-histórica. Vejamos o que este personagem real possuía de tão especial:

Menochio nasceu em 1532. Morava em Friuli, uma localidade italiana bastante atrasada. Era casado e teve 11 filhos, dos quais quatro faleceram. Exerceu os trabalhos de pedreiro, marceneiro e carpinteiro, mas sua profissão era moleiro (dono de moinho). Possuía 2 moinhos e 2 campos para aluguel e usava a capa com capuz branco, traje dos moleiros. Ocupou o cargo de magistrado em 5 aldeias e administrador da paróquia local. Era letrado, talvez tenha frequentado a escola regular. Chegou a ser desaprovado por suas idéias, mas não odiado.

Que idéias tão chocantes um homem comum como este poderia possuir? Menochio foi denunciado á Inquisição em 28 de setembro de 1583 por causa de suas palavras ameaçadoras. Costumava blasfemar sobre os santos e Jesus Cristo, respeitava somente Deus. Em depoimento o pároco Odorico Vorai afirmou que Menochio não se confessava nem obedecia a hierarquia católica, isso prejudicou bastante o moleiro. O primeiro interrogatório aconteceu em 07 de fevereiro de 1584. Durante as perguntas Menochio admitiu questionar a virgindade de Maria, mas afirmou que não forçava ninguém a acreditar em suas idéias.

O homem era ousado pra sua época e formulou uma teoria chocante. Acreditava que o mundo havia surgido de uma grande massa composta por terra, ar, água e fogo em movimento. Dessa massa teriam vindo os anjos, assim como os vermes vinham do queijo. Sua fala chocava os religiosos que realizaram novos interrogatórios em 16 e 22 de fevereiro e também em 8 de março. No decorrer das conversas Menochio não renegava nada em suas idéias, mas pedia perdão prometendo seguir as regras católicas.

Em 28 de abril começou a falar sobre suas opiniões com os superiores católicos. Criticou o uso do Latim nos tribunais da Igreja uma vez que os pobres não compreendiam esse idioma. Afirmou que algumas leis da religião como os sacramentos não passavam de mercadorias. Já no dia 01 de maio num novo interrogatório ele afirmou que a Igreja Católica não deveria ter tanta pompa. Considerava os religiosos muito mais culpados pela pobreza do povo do que os próprios nobres. Dizia que a Igreja possuía terras demais e não podia ser considerada superior ao restante da sociedade porque todos possuem Deus dentro de si.

Tantas críticas aos católicos levou a suspeita de que fosse anabatista já que negava os sacramentos, as imagens sacras, o Cristo divino, o batismo, entre outros. Por outro lado Menochio valorizava práticas católicas como a missa, a eucaristia e a confissão. Alguns registros apontam que esteve em contato com o luterismo também. Logo, é impossível descobrir qual das três religiões realmente seguia, se é que seguia alguma verdadeiramente porque não aceitava idéias passivamente. Tudo indica que suas idéias eram próprias, apesar de indícios que tenha sido influenciado por Nicola de Melchiori (pintor da Porcia).

No inicio de seu processo Menochio era cauteloso dizendo ter sido tentado pelo demônio para falar tais coisas, mas tempos depois afirmava ter uma cabeça sutil que formou idéias após muitas leituras. A lista do que teria lido se perdeu, mas é fato que realizou muitos empréstimos na vila provando a existência de mais leitores do que o previsto. Era uma grande devorador de obras, sobretudo das escritas em língua vulgar. Sua maneira de ler era muito particular, lia de forma parcial e costumava ocultar algumas partes enquanto exaltava outras para provar as idéias que formulou.

Menochio não acreditava na divindade de Cristo nem em sua crucificação. Quanto a Deus pensava ser impossível que criasse algo sem matéria disponível, assim como o queijo. Para ele Deus era um pai amoroso, porém distante; era uma autoridade que não trabalhava, dava ordens, assim quem teria criado o mundo seria o Espírito Santo.  Dizia que todos os seres teriam vindo do caos entre os 4 elementos, primeiro vieram os mais perfeitos: os anjos, depois a santíssima majestade: Deus, e por último teriam surgido o Espírito Santo e a alma.

Para Menochio os homens tinham 7 almas (intelecto, memória, vontade, pensamento, crença, fé e esperança) que morriam juntamente com o corpo ( terra, ar, água e fogo). Também acreditava que as pessoas possuíssem dois espíritos, um bom (que retornava para Deus) e outro ruim (que desaparecia). Dessa maneira pensava em 2 mortes diferentes, a corporal e a espiritual. Enquanto explicava tais idéias ia viajando de texto em texto que lera. Sua vontade era conversar sobre esses fatos com homens importantes como reis e o próprio papa, mas tudo o que conseguira foi o diálogo com os padres da Inquisição.

Falava que o paraíso era uma grande festa, mas que o inferno não passava de uma criação dos padres. Considerava todo tipo de água benta desde que a pessoa soubesse usar as palavras certas. Tolerava cristãos, turcos, judeus e até heréticos porque para ele todos eram filhos de Deus. Desejava um mundo novo com uma nova sociedade formada lentamente. Ao que tudo indica conseguiu unir alguns ignorantes e sábios contra a hierarquia católica, embora não existam provas de seu contato com os sábios. Os inquisidores realmente não sabiam o que fazer com uma figura tão assustadoramente determinada e  crítica.

Os interrogatórios terminaram em 12 de maio. O processo já era cinco vezes maior que o normal. Cinco dias depois Menochio desistiu de um advogado e entregou uma carta pedindo desculpas aos católicos afirmando ter sido tomado por um falso espírito. No mesmo dia os juízes o condenaram por heresia. Sua pena era negar publicamente todas as suas idéias, cumprir várias penitências, vestir para sempre um manto com uma cruz e passar o resto da vida preso ás custas de seus filhos. Ele cumpriu todo o seu castigo até o dia 18 de janeiro de 1586 quando pediu perdão novamente e foi atendido com algumas condições.

Duas dessas condições eram a de usar o manto todos os dias e só sair da cidade para trabalhar. Em 1590 retornou ao cargo de administrador da Igreja de Montereale. Entretanto, em 28 de outubro de 1598 a Inquisição começou a julgá-lo novamente. Após alguns interrogatórios puderam perceber que ele vinha mantendo suas idéias somente para si e decidiram arquivar o processo. Porém, alguns meses depois, as idéias de Menochio haviam saído de sua aldeia e circulavam de boca em boca em outras localidades, assim ele foi preso novamente em junho de 1599.

Menochio foi condenado á tortura, mas revelou somente um nome com quem havia conversado. Ele previa sua morte e chegou a clamar por ela. Em 1601, provavelmente, foi morto por ordem dos mais altos escalões da Igreja Católica. 

A obra é interessante por apontar que Menochio se sentia extremamente sozinho por não ter com quem compartilhar suas idéias, pois ao que tudo indica não fazia isso nem com sua própria família. O autor do livro enfatiza a mentalidade desse homem comum analisando principalmente sua maneira particular de ler, sua curiosidade insaciável, sua mania de pensar e recriar além de sua vontade de falar com os sábios. Dessa maneira Ginzburg produziu um rico trabalho acerca da micro história, da subjetividade do personagem, ou seja, deixou de lado os grandes heróis e se interessou por uma pessoa comum observando como ela também pode ser interessante e, por que não dizer, até mesmo importante.
Deixo a dica dessa leitura louvável e aguardo novos comentários sobre a obra. Até mais.

Um comentário:

Anderson Sartori disse...

Este autor introduz uma nova concepção de estudar e compreender a história, deixando de lado a visão único das metanarrativas e olhando o micro, mas sem perder as relações com o macro. Ou seja, o caso de um moleiro que jamais seria colocado em nenhum livro, mas que tem haver com um processo longo que foi a Idade Média e os medos desse período. Uma importante lição do livro é mostrar que decide ser história, ser um personagem histórico ou não.... uma leitura fundamental para quem busca uma outra forma de conhecer e pesquisar a história, deixando os grandes personagens para aquela velha e conservadora história que conhecemos a muito tempo no Brasil.